segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Infiéis da própria vida


Nossa vida está perdendo consistência. Espessura. Segurança. Estamos mais sujeitos a mudar do que a insistir.

Estamos mais sujeitos a nos separar do que a permanecer casados.

Estamos mais sujeitos a ir embora do que a voltar para casa.

O mundo está tomado de mutantes, zeligs, camaleões, transformers.

Se algo incomoda, se algo atrapalha, o botão Desapego é rapidamente acionado.

Como não pretendemos sofrer, caminhamos para a total insensibilidade. Deixa-se o começo por outro começo. Não há mais meio ou fim, o que vigora é a desistência.

Substituímos a responsabilidade pela ideia de liberdade.

Experimentar é a lei – fazer patrimônio e futuro não tem sentido.

Anteriormente, nos dedicávamos à família. Agora, nossa obsessão é o prazer pessoal. Danem-se as complicações.

A aparente leveza se assemelha a desenraizamento.

Buscamos chegar logo, não olhar a paisagem. A velocidade é o que nos provoca. Buscamos desembarcar logo num novo destino, não nos vale a estrada. A viagem deve ser curta e indolor, jamais reflexiva e longa.

Não estou sendo dramático. Na infância, tínhamos três canais de tevê. Hoje, são mais de 300. A variedade nos conduz a não nos fixarmos em nada durante grande tempo.

Ter um romance longo é quase uma insanidade, assim como ler um livro de 400 páginas ou assistir a um filme de três horas.

Não oferecemos chance para permanência, para a rotina, para a confirmação das expectativas.

Não toleramos o desgaste, o tentar o possível antes de se despedir. Sacrifício e renúncia são expressões banidas do vocabulário, significam burrice. “Perder tempo com alguém, com tanta gente interessante por aí?” é o que nos dizem.

O oi já é um convite, o tchau já é um adeus, não existe relacionamento seguro e firme que suporte a tempestade de contradições.

São muitos apelos para biografias imaginárias. São muitas opções de ser diferente, que nem descobrimos quem somos.

É sempre alguém nos chamando no Facebook ou nas redes sociais com uma história incrível, extraordinária, afrodisíaca, que é um crime não provar.

É sempre alguém oferecendo conselhos, dicas, sugestões.

Repare. O mundo virou sábio de repente: todos têm soluções, ninguém mais convive com seus problemas.

Não me refiro à infidelidade amorosa, mas ao quanto somos infiéis com o nosso passado.

Não é trocar de parceiro ou parceira, mas trocar de tudo: largar emprego, cidade, amigos, esportes, manias.

Troca-se de mentalidade mais do que de opinião.

E é tão fácil descartar, difícil é refinar a própria vida.

Mas se você concluiu a leitura desta crônica, ainda há esperança.

Esperança de não virar a página por um momento.


Fabrício Carpinejar

Nunca foi amor, mas insiste tanto em ser

Estava pensando em não vir. No fundo, estou pensando nisso até agora. Mas fico aqui, com cara de taxo, olhando as suas coisas bagunçadas, os meus neurônios bagunçados, o meu coração bagunçado, o meu vestido bagunçado e tudo que estava quase arrumado em mim se confunde num segundo quando ele se aproxima como quem já aceitou casar comigo, mas não disse “sim”. Apenas me mira com sorriso de bobo me revirando ainda mais. Uma grata desgraça.
Eu não queria vir. Na verdade, eu queria. Eu não queria era vir aqui, me apaixonar mais ainda e ter que ir embora sozinha. Porque sempre que venho, ele entra em mim, mas não mora. Ele me abraça, mas não me prende. Ele é meu par, mas não meu companheiro. Ele se deita, mas não fica. E eu continuo aqui sozinha mesmo sendo dois. Solidão besta. Não é fácil gostar dele. Já quis o matar tantas vezes. Mas ainda não morri.
Mas daqui a pouco, depois de gozar em mim como se eu tivesse pedindo aquilo como um prêmio ou coisa assim, ele vai se virar para o lado, olhar no relógio umas quinhentas vezes, o celular vai tocar sem parar e, logo, logo, ele arrumará algo pra fazer e ir embora. Eu conheço o seu jogo. Vai dizer que precisa salvar o mundo, buscar a tia avó no hospital, ver futebol, reencontrar um amigo ou buscar a prima na faculdade, sei lá. Só sei que ele vai. E eu queria estar aqui quando ele voltasse. Eu queria que eu fosse o motivo para ele voltar. Queria que eu fosse seu mundo, sua tia avó, seu futebol, sua amiga, sua prima, sua puta ou coisa assim.
Juro que vou embora antes mesmo dele entrar no banho. Mas ele sem camisa parece um canto sagrado. Mesmo com as leves marcas de queimadura na barriga só porque não sabe nem fritar um bife sem se machucar. Ele me pede faz-um-lanche? e eu já proponho banquete nupcial. Ele me pede umas horas no dia e eu já quero décadas juntos. Ele me pede um tiquinho de qualquer coisa e eu já venho com temporadas completas. Deve ser isso. Meu erro é mergulhar de cabeça, enquanto ele ainda molha os tornozelos. Quero saltar do avião e ele deseja apenas uma companhia para quando estiver nas nuvens. “Eu quero meter”, ele diz. “Eu quero te ter”, penso.
Nunca foi amor, mas insiste tanto em ser.

Hugo Rodrigues

terça-feira, 20 de agosto de 2013

A grande contradição do amor



Quem não ama faz tudo certo. Oferece tempo de sobra, respeita o espaço do outro, deixa sair com os amigos quantas vezes quiser, não pressiona, pode ficar tranquilamente uma semana sem ver, não telefona a toda hora, não cobra, não discute, não incomoda com perguntas. É perfeito no namoro justamente porque não tem nenhum interesse.

quem ama faz tudo errado. Atropela a relação, apressa, pretende ver sempre, sofrerá com a ansiedade do próximo encontro, tem ciúme, saudade do ciúme, fica em cima controlando as saídas, é desajeitado para dizer o que pensa, trocará os pés pelas mãos, vai buscar entender e analisar cada palavra, cada silêncio, não esquece nada do que foi dito, não dormirá sem saber que não está sozinho no próprio arrebatamento.

Quem ama não seduz. Se seduz, não ama. Não dá para amar e seduzir ao mesmo tempo.

Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Antes fosse tosse. Mas é amor

A cigana falou que é amor. O médico disse que é amor. A psicóloga falou que é amor. Até a minha tia-avó que nem lembra mais meu nome falou que é amor. Antes fosse tosse, catapora, caxumba ou qualquer coisa que valha. Mas é amor. Quando ela chega perto de mim, eu sinto tremer até o meu pâncreas. Todos os meus duzentos e seis ossos se balançam mais do que aquelas loiras bonitas que dançam por aí. Ela chega mansinha, me diz um oi-qualquer-coisa com os olhos e tudo que existe naquela pequena me aparece como um zoom: sua falha na sobrancelha esquerda, a rachadura do seu lábio sem batom, seus brincos de pedrinhas brilhantes, seu piercing na narina direita e seus olhos cor-de-mel.
Quando ela se aproxima, eu penso em mudar de planeta, em salvar um gato de um incêndio bem na frente dela ou de ser agarrado por algumas loucas fanáticas que me confundiram com algum famoso. Queria que minha boca falasse – em qualquer tom – a gritaria que meu coração lhe oferece toda vez que aquela pequena se coloca a uns palmos de mim. Eu penso caralho-filho-da-puta-fala-alguma-coisa-romântica, mas só digo meia dúzia de clichês. Eu sou um babaca perto dela. Longe, também.
Aí, eu digo:
- Me conte do teu dia. Fala dos teus planos, do almoço vegetariano, das amigas que furaram aquele cinema das quatorze e dos caras que te cantaram pelas ruas. Deixa que eu faço o jantar e lavo a louça. Me conte tuas falhas que eu te apresento os meus remendos. Me conte teus segredos que eu te mostro meus ouvidos-baús considerados os mais seguros do mundos. Traga tuas aflições para meu colo repousante. E prepare-se para viver apertada em mim. Porque abraços são beijos dos braços.
Ela me ri sem força, leve como uma bexiga de ar solta por aí. Passeia sua mão na minha e faz carinho em meu dedão como quem agradece eternamente e diz que vai ficar tudo bem. Queria levá-la ao médico para saber se ela sofre de amores por mim, também. Mas ela é tão segura que fico com medo de ser apenas uma virosezinha qualquer.

Hugo Rodrigues
Mas eu nunca fui o tipo de gente que olha pra beleza e venera. Porque eu acho isso bobagem, porque a paisagem de dentro é sempre mais bonita. E se você me fala que fulano é lindo por causa do olho de cor diferente, por causa do sorriso branco ou por causa do físico perfeito, eu sou obrigado a rir e dizer que nada disso vale um amor pra anos, um amor de anos: o exterior sempre perde para o tempo, sempre sucumbe a falta de maquiagem e a falta de mundo.

Igor Pires

sexta-feira, 21 de junho de 2013


Eu me apaixono mesmo, eu sou intensa mesmo, eu me ferro mesmo, às vezes eu ferro as pessoas mesmo. Tudo é bom, tudo é vazio, tudo é bom de novo. Viver é um absurdo e não dá pra passar por isso tão ileso.


Tati Bernardi

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Para que serve uma relação?

Lendo a entrevista que o médico e escritor Drauzio Varela deu para a revista Marie Claire, encontrei a definição mais simples e exata sobre o sentido de mantermos uma relação: "uma relação tem que servir para tornar a vida dos dois mais fácil"Vou dar continuidade a esta afirmação porque o assunto é bom e merece ser desenvolvido. Algumas pessoas mantém relações para se sentirem integradas na sociedade, para provarem a si mesmas que são capazes de ser amadas, para evitar a solidão, por dinheiro ou por preguiça. Todos fadados à frustração. Uma relação tem que servir para você se sentir 100% à vontade com outra pessoa, à vontade para concordar com ela e discordar dela, para ter sexo sem não-me-toques ou para cair no sono logo após o jantar, pregado. Uma relação tem que servir para você ter com quem ir ao cinema de mãos dadas, para ter alguém que instale o som novo enquanto você prepara uma omelete, para ter alguém com quem viajar para um país distante, para ter alguém com quem ficar em silêncio sem que nenhum dos dois se incomode com isso. Uma relação tem que servir para, às vezes, estimular você a se produzir, e, quase sempre, estimular você a ser do jeito que é, de cara lavada e bonita a seu modo. Uma relação tem que servir para um e outro se sentirem amparados nas suas inquietações, para ensinar a confiar, a respeitar as diferenças que há entre as pessoas, e deve servir para fazer os dois se divertirem demais, mesmo em casa, principalmente em casa. Uma relação tem que servir para cobrir as despesas um do outro num momento de aperto, e cobrir as dores um do outro num momento de melancolia, e cobrirem o corpo um do outro quando o cobertor cair. Uma relação tem que servir para um acompanhar o outro no médico, para um perdoar as fraquezas do outro, para um abrir a garrafa de vinho e para o outro abrir o jogo, e para os dois abrirem-se para o mundo, cientes de que o mundo não se resume aos dois.


Martha Medeiros

terça-feira, 9 de abril de 2013

Ele pode estar olhando as suas fotos. Neste exato momento. Porque não? Passou-se muito tempo. Detalhes se perderam. E daí? Pode ser que ele faça todas as coisas que você faz. Escondida. Sem deixar rastro nem pistas. Talvez ele faça aquela cara de dengoso e sinta saudade do quanto você gostava disso. Ou percorra trajetos que eram seus, na tentativa de não deixar que você se disperse das lembranças. As boas. Por escolha ou fatalidade, pouco importa, ele pode pensar em você. Todos os dias. E ainda assim preferir o silêncio. Ele pode reler seus bilhetes, procurar o seu cheiro em outros cheiros. Ele pode ouvir as suas músicas, procurar a sua voz em outras vozes . Quem nos faz falta acerta o coração como um vento súbito que entra pela janela aberta. Não há escape. Talvez ele perceba que você faz falta. E diferença. De alguma forma, numa noite fria. Você não sabe. Ele pode ser o cara com quem passará aquele tão sonhado verão em Paris. Talvez, ele volte. Ou não. 

(desconheço o autor)

quinta-feira, 14 de março de 2013

Grandes e pequenas mulheres


Há mulheres de todos os gêneros. Histéricas, batalhadoras, frescas, profissionais, chatas, inteligentes, gostosas, parasitas, sensacionais. Mulheres de origens diversas, de idades várias, mulheres de posses ou de grana curta. Mulheres de tudo quanto é jeito. Mas se eu fosse homem prestaria atenção apenas num quesito: se a mulher é do tipo que puxa pra cima ou se é do tipo que empurra pra baixo.

Dizem que por trás de todo grande homem existe uma grande mulher. Meia-verdade. Ele pode ser grande estando sozinho também. Mas com uma mulher xarope ele não vai chegar a lugar algum.

Mulher que puxa pra cima é mulher que aposta nas decisões do cara, que não fica telefonando pro escritório toda hora, que tem a profissão dela, que o apóia quando ele diz que vai pedir demissão por questões éticas e que confia que vai dar tudo certo.

Mulher que empurra pra baixo é a que põe minhoca na cabeça dele sobre os seus colegas, a que tem acessos de carência bem na hora que ele tem que entrar numa reunião, a que não avaliza nenhuma mudança que ele propõe, a que quer manter tudo como está.

Mulher que puxa pra cima é a que dá uns toques na hora de ele se vestir, a que não perturba com questões menores, a que incentiva o marido a procurar os amigos, a que separa matérias de revista que possam interessá-lo, a que indica livros, a que faz amor com vontade.

Mulher que empurra pra baixo é a que reclama do salário dele, a que não acredita que ele tenha taco pra assumir uma promoção, a que acha que viajar é despesa e não investimento, a que tem ciúmes da secretária.

Mulher que puxa pra cima é a que dá conselhos e não palpite, a que acompanha nas festas e nas roubadas, a que tem bom humor.

Mulher que empurra pra baixo é a que debocha dos defeitos dele em rodinhas de amigos e que não acredita que ele vá mais longe do que já foi.

Se por trás de todo grande homem existe uma grande mulher, então vale o inverso também: por trás de um pequeno homem talvez exista uma mulherzinha de nada.


Martha Medeiros

quarta-feira, 13 de março de 2013

Medo de se apaixonar


Você tem medo de se apaixonar. Medo de sofrer o que não está acostumada. Medo de se conhecer e esquecer outra vez. Medo de sacrificar a amizade. Medo de perder a vontade de trabalhar, de aguardar que alguma coisa mude de repente, de alterar o trajeto para apressar encontros. Medo se o telefone toca, se o telefone não toca. Medo da curiosidade, de ouvir o nome dele em qualquer conversa. Medo de inventar desculpa para se ver livre do medo. Medo de se sentir observada em excesso, de descobrir que a nudez ainda é pouca perto de um olhar insistente. Não suportar ser olhada com esmero e devoção. Nem os anjos, nem Deus aguentam uma reza por mais de duas horas. Medo de ser engolida como se fosse líquido, de ser beijada como se fosse líquen, de ser tragada como se fosse leve. Você tem medo de se apaixonar por si mesma logo agora que tinha desistido de sua vida. Medo de enfrentar a infância, o seio que criou para aquecer as mãos quando criança, medo de ser a última a vir para a mesa, a última a voltar da rua, a última a chorar. Você tem medo de se apaixonar e não prever o que pode sumir, o que pode desaparecer. Medo de se roubar para dar a ele, de ser roubada e pedir de volta. Medo de que ele seja um canalha, medo de que seja um poeta, medo de que seja amoroso, medo de que seja um pilantra, incerta do que realmente quer, talvez todos em um único homem, todos um pouco por dia. Medo do imprevisível que foi planejado. Medo de que ele morda os lábios e prove o seu sangue. Você tem medo de oferecer o lado mais fraco do corpo. O corpo mais lado da fraqueza. Medo de que ele seja o homem certo na hora errada, a hora certa para o homem errado. Medo de se ultrapassar e se esperar por anos, até que você antes disso e você depois disso possam se coincidir novamente. Medo de largar o tédio, afinal você e o tédio enfim se entendiam. Medo de que ele inspire a violência da posse, a violência do egoísmo, que não queira repartir ele com mais ninguém, nem com seu passado. Medo de que não queira se repartir com mais ninguém, além dele. Medo de que ele seja melhor do que suas respostas, pior do que as suas dúvidas. Medo de que ele não seja vulgar para escorraçar mas deliciosamente rude para chamar, que ele se vire para não dormir, que ele se acorde ao escutar sua voz. Medo de ser sugada como se fosse pólen, soprada como se fosse brasa, recolhida como se fosse paz. Medo de ser destruída, aniquilada, devastada e não reclamar da beleza das ruínas. Medo de ser antecipada e ficar sem ter o que dizer. Medo de não ser interessante o suficiente para prender sua atenção. Medo da independência dele, de sua algazarra, de sua facilidade em fazer amigas. Medo de que ele não precise de você. Medo de ser uma brincadeira dele quando fala sério ou que banque o sério quando faz uma brincadeira. Medo do cheiro dos travesseiros. Medo do cheiro das roupas. Medo do cheiro nos cabelos. Medo de não respirar sem recuar. Medo de que o medo de entrar no medo seja maior do que o medo de sair do medo. Medo de não ser convincente na cama, persuasiva no silêncio, carente no fôlego. Medo de que a alegria seja apreensão, de que o contentamento seja ansiedade. Medo de não soltar as pernas das pernas dele. Medo de soltar as pernas das pernas dele. Medo de convidá-lo a entrar, medo de deixá-lo ir. Medo da vergonha que vem junto da sinceridade. Medo da perfeição que não interessa. Medo de machucar, ferir, agredir para não ser machucada, ferida, agredida. Medo de estragar a felicidade por não merecê-la. Medo de não mastigar a felicidade por respeito. Medo de passar pela felicidade sem reconhecê-la. Medo do cansaço de parecer inteligente quando não há o que opinar. Medo de interromper o que recém iniciou, de começar o que terminou. Medo de faltar as aulas e mentir como foram. Medo do aniversário sem ele por perto, dos bares e das baladas sem ele por perto, do convívio sem alguém para se mostrar. Medo de enlouquecer sozinha. Não há nada mais triste do que enlouquecer sozinha. Você tem medo de já estar apaixonada.



— Fabrício Carpinejar.